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terça-feira, 27 de outubro de 2015

A Terra é Azul e nós queremos namorar.

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Marco Antônio sintonizou o pequeno radio Evadim, justamente quando o repórter noticiava sobre um russo que tinha viajado para o espaço. Na época eu não me importava com o calendário diário. Interessava-me apenas pelo sábado, domingo, feriado ou férias. Só fui me preocupar com isso quando reforçaram a ideia de que "Até 2000 chegará, de 2000 não passará". Em 1962 fiquei imaginando se eu viveria até o ano 2000 para ver o mundo acabar. Minha intenção era subir num lugar bem alto para observar a dizimação lá de cima. Talvez no alto da serra que dobra para Cachoeira das Andorinhas, ou atémesmo no Pico do Itacolomi, onde uma vez quase morri ao atravessar um desfiladeiro com dois trilhos. Ainda estava muito longe a tal profecia e eu tinha muito tempo. Me preocuparia mais adiante.

O fato da humanidade andar mais devagar, os feitos eram mais notórios e ficavam melhores registrados em nossas mentes. Naquele dia estávamos sentados no chafariz de frente o Cine Vila Rica, quando soubemos das últimas notícias sobre a corrida espacial entre Russia e Estados Unidos. A princípio eu pensava que a corrida eram dois foguetes lado a lado e aquele que chegasse primeiro seria o vencedor. Na verdade foi isso, mas de forma distribuída nas diversas tecnologias. Até adquirir entendimento eu mentalizava a coisa mais para o lado do gibi Flash Gordon no planeta Mongo.

Naquele dia tínhamos acabado de ser barrados na entrada do cinema. Nossa intenção era assistir um filme com a Jane Mansfield, do qual não me lembro o nome. Mas o cartaz era aquela coisa maravilhosa. Queríamos apenas ver as curvas secretas da diva, que fazia páreo na época para Sofia Loren, e para Marlyn Monroe que viria a falecer um ano mais tarde. E logo depois faleceu a própria Mansfield, em acidente de trânsito horroroso - ficou sem a linda cabeça. Gostávamos de todas, mas dela principalmente, porque não havia meio termo. Enquanto as outras faziam caras e bocas, a Jane mostrava o que queríamos ver. Ficávamos indignados com aquelas mortes estúpidas, e nos perguntando porque as pessoas famosas e bonitas morriam tão cedo.



No Brasil também havia mulheres tão bonitas quanto elas. Tonia Carrero não ficava trás. Era até mais bonita, porém ela e as outras brasileiras eram muito comportadas. Só pensavam em mostrar os cabelos e os rostos de bonecas. Muito anos mais tarde, quando eu já não morava em Ouro Preto, conheci a Tonia pessoalmente numa inauguração de teatro, onde meu amigo João Bennio era o teatrólogo, diretor da peça. Ele era também amigo de juventude da Tonia e a convidou para participar na estréia. Eu já tinha meus 22 anos e ela ainda estava maravilhosa, mesmo tendo o dobro da minha idade. Na ocasião, muito simpática, teceu elogios sobre a beleza das pessoas presentes.

— João Bennio, aqui nesta cidade tem mulheres lindas, mas os homens não ficam atrás —  e deu uma olhada de rabo de olhos para o meu lado, com aquele sorriso maroto e maravilhoso, que só ela sabia dar — coisa de novela.

Eu que estava perto, de olhos vidrados nela, quando de repente ela me puxou pelo braço e deu-me um abraço daqueles de não passar nem vento, que perdi até o rumo e o compasso. Parece que ela já estava meio altinha, mas nem posso afirmar, pois nem sei se ela bebia. Era muito simpática e brincalhona. O mais provável que não passou de um "vem cá menino!", só para me deixar sem jeito.  O João Bennio logo tratou de estragar o prazer e me separar da diva. Se o infeliz do João não tivesse azarado, certamente eu teria ficado mais amigo dela, pois estávamos numa chácara comemorando o sucesso da inauguração. Dela fiquei só com a lembrança e o perfume impregnado pelo abraço, sendo aquele encontro o único em minha vida que me aproximara de uma famosa deslumbrante.

Voltando a Ouro Preto. A conversa sobre a corrida espacial pegou rumo.

— Será que ele vai encontrar o Flash Gordon? — uma pergunta que surgiu. Não sei quem a fez, mas penso que foi o Nenéu, filho do Senhor Abeylard, que habitava pequena parte no terceiro andar do casarão em ruínas, hoje Solar do Rosário. Ele deveria ter na época uns sete anos.

— Cê é bobo, Nenéu. Flash Gordon é só na revista. Esse é comunista. Vai jogar bomba em todo mundo.
— Bobo é você. Vê lá se tem bomba pra cada pessoa de Ouro Preto!
— É pro mundo inteiro, Nenéu. Deixa de ser capiau da roça. É atômica. Seu pai já nos contou várias vezes o caso da tal bomba atômica que jogaram nos japoneses. Só duas, e arrebentou tudo por lá.
— Os comunistas até mataram aquela cachorrinha! — um outro comentou.
— Que cachorrinha?
— Aquela que foi no espaço!
— Ah! A tal da Laika. Lá na Ponte Seca tem uma com esse nome.

A conversa ia e vinha, sem pé nem cabeça. O Silvério era um cara de uns vinte poucos anos, forte, sarado, jogava bola no adro de trás da igreja do Rosário, sem camisa. As meninas iam todas para a mureta da Rua de Cima e ficavam suspirando.

— É lindo! — dizia uma.
-— É um pão! — comentavam na gíria que significava que o cara era quentinho e gostoso.

As meninas do Rosário e outros bairros na década de 60

As mães gritavam as meninas para irem para casa e parar de ver aquela "pouca vergonha!". De fato, a frase era apropriada e não ofendia de forma alguma, pois o Silvério não tinha vergonha nenhuma em andar quase pelado. Mas era uma frustração para as meninas, que tinham lá seus quatorze a quinze anos. Da mesma maneira que elas não davam bola pra gente, ele também nem olhava pra elas. Assim como nós gostávamos das atrizes de Hollywood, as meninas também gostavam dos galãs internacionais. E era aquela coisa idiota da gente gostar de quem está longe sem nenhuma chance. Minha irmã Marília era "gamada" no Rock Hudson, o cara da época, que destroçava corações. E era bonito mesmo, só que a gente como macho de verdade, não admitia. O problema é que as meninas usavam a referência de beleza deles para comparar com a nossa, diminuindo qualquer chance dos meninos do bairro com o sexo oposto. A Marília até escreveu uma carta para o fã clube dele nos Estados Unidos.

— Ai Meu Deus! Ai meu Deus! — assim que o carteiro passou no número 14 da Rua Gabriel Santos, hoje a República Sussego, 88, ela disparou escada acima naquela gritaria, que até Dona Brigida, a vizinha de baixo, perguntou do quintal para saber o que acontecera.





Rock Hudson
— Olha aqui! —  dizia a Marília, tremendo,  quase chorando,  mostrando a foto do Rock Hudson com uma dedicatória para ela. —  Ele mandou pra mim! Pra mim! E beijava aquela foto que era uma meléca.

Claro que ele nem viu a foto; o Fã Clube que mandou —  sabemos disso hoje. Mas fiquei com inveja. Imagina se a Jane me enviasse uma foto daquelas mostrando a peitaria. Minha mãe aprontaria um escândalo para eu sair do banheiro, mais do que já permanecia. Sei que aquela foto do galã ficou pregada por muito tempo na parede do quarto dela. Mas depois de muitos anos, o galã morreu vítima da Aids. Sua homossexualidade foi muito discutida na ocasião, mas além dele ter feito mais de 70 filmes, o avanço das pesquisas contra a Aids tiveram os resultados que existem hoje, graças à extensa campanha de prevenção e controle impulsionadas pelo seu nome. "Se até Rock Hudson teve, qualquer um pode ter. Previnam-se!". Louvável!

Mas voltando ao Rosário, novamente, Silvério gostava mesmo é de ficar amassando as jovens da idade dele pelos cantos do bairro, na escadaria atrás da Igreja do Rosário, principalmente. Escondíamos para ver como ele fazia, mas era muito escuro e só escutávamos a gemedeira.

—  Ele está batendo nela. —  dizia um.
—  Que batendo o quê! Tá é beijando!
—  Beijando? Que beijando o quê! Ela tá gemendo. Tá doendo!
—  Uai, beijando noutro lugar, uai! Tá é gostando.
—  Que lugar que vai beijar se não for na boca. Cê é besta?
—  Lá! Beijando lá! Já vi numa revistinha no colégio, daquele tal de Zefiro.
—  Cê viu?
—  Vi! Os estudantes internos do Arquidiocesano trazem lá do Rio de Janeiro. Mostra tudo. Beijar lá chma "polaca".
—  Polaca?
— É! As polonesas gostam demais!
— Eu ein!




Por curiosidade eu procurei alguma coisa do Zefiro para ilustrar e acreditem, achei um site com todas as obras dele. Historicamente tem imenso valor. Por muitos anos fez parte da literatura pornô de todos os brasileiros.
Enquanto caminhávamos para o nosso Clube o assunto continuava. Sei que o Vicente Gomes gostava de pegar no meu pé e vice-versa. Ele me fez uma série de indagações, não me lembro bem das palavras mas resultou em gozação.

—  Cê viu? Marcinho, você já beijou uma?
—  Cê viu? Uma o quê? Lá em baixo?
—  Não, sô! Na boca!
—  Claro, né!
—  Quem?
— Ah! Não vou falar.
— Beijou nada! Só beijou medalha de santinha de Nossa Senhora. — e a risada era geral.

Vicente Gomes na adolescência.
Beija, não beija, foi o tema do parlatório até chegamos à porta do casarão. O imenso prédio, de cor ocre, no Bairro do Rosário que, mesmo em estado lastimável, não perdera a imponência.  Construído para funcionar o Hotel Monteiro, os proprietários tiveram o azar pela transferência da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte. Evadiu-se todo mundo para nova capital e o negócio foi à banca rota. Quase cem anos se passaram e o hotel virou um mausoléu em ruínas, com a sua maior parte totalmente comprometida. Na época, estava em aproveitamento apenas o térreo, onde vinha funcionando o enorme e próspero Armazém do Senhor José Ribeiro.  Também eram aproveitados alguns cômodos de frente para casa do Vinício Godoy, na Rua de Cima, habitados pela família dos Fortes, que logo se mudou. Na outra extremidade, em poucos cômodos no terceiro andar, moravam Marco Aurélio, Badinho, Nenéu, Pedrinho, os dois irmãos gêmeos pequenos e dois irmãos adultos, filhos do Senhor Abeylard, o pracinha correspondente da Segunda Grande Guerra. Pouco tempo depois saíram para um prédio de um antigo quartel, dando lugar à outra família, onde mudou-se uma garota que atiçava o meu libido. Esta não vou citar o nome porque o "afair" merece ser contado mais tarde.

Influenciados pelos quadrinhos da revista Luluzinha, especialmente o Clube do Bolinha, no segundo andar do casarão, fundamos nosso clube de meninos, em duas espaçosas salas, onde guardávamos e fazíamos de tudo. Desde fantasias de carnaval de rua, carrinhos de rolimã, coleção de revistas e realização dos campeonatos com jogos de botão, muito bem organizados pelo Marco Antônio Maia, com tabela, primeiro e segundo turnos. Nenhum adulto sabia do clube, apenas nós meninos, até que num dia azarento,  um dos moleques fez xixi no assoalho do cômodo ao lado, vazando pelas frestas em cima da mesa de contabilidade do armazém. Fatalmente ficamos sem a sede do clube, mas era tão grande o prédio que escolhemos outras salas nos lugares com mais risco de desabamento, pois lá seria o lugar mais improvável de nos descobrir. O novo espaço para o clube passou a funcionar bem. Seria perfeito se existisse a energia elétrica. Ficamos muito indignados por terem acabado com nosso clube anterior, que possuía energia elétrica disponível e no atual tínhamos que providenciar um bom lampião a gás, pois era à noite que acontecia a maioria das partidas do campeonato. Isso, sem falar na dificuldade para chegar até o clube, no meio de escadas caindo e tábuas que se soltavam.

O empreendimento Solar do Rosário salvou um dos mais belos prédios de estilo colonial no Brasil.

— Porque não fazemos o campeonato durante o dia?
—Tem que ser a noite! - justificava Marco Antônio, que era o organizador.
— Qual a diferença? De dia nem precisamos de energia.
— Já viu campeonato só de dia? Na TV é à noite, e no rádio também.

Ele era muito detalhista. Enquanto jogávamos botão, ligava o rádio à pilha nos jogos do campeonato do Rio ou de Minas. E assim criava-se aquela atmosfera animada em torno da mesa. Tinha até um fundamento.

O casarão do Rosário, onde ficava a sede do nosso clube.

— Com que dinheiro vamos comprar um lampião? — surgiu a questão.
— Uai! Quando a gente pegar as contribuições na hora da missa a gente guarda um pouco. — sugeriram.
— Ah, não! Da igreja não! Deus castiga. Padre Simões é legal demais!
— Castiga nada. A gente ajuda na missa todo domingo e nem muito obrigado a gente ganha dele.

Era uma boa ideia, mas não ia dar certo. O sacristão ficava de olho quando passávamos a sacolinha recolhendo. Mas tínhamos urgência da iluminação pelo fato de termos parado o campeonato de botões.

— A gente acende vela!
— Vela não dá! Não ilumina nada.
— A gente acende um monte delas e espalha pela sala.
— É! Espalhando bem, umas vinte, aí vai dar.



Velas cada um de nós tinha em casa sobrando, pois vira e mexe, a luz da Companhia Ouropretana nos deixava no blackout. Limpamos bem o lugar, gastamos muito Detefon líquido nas frestas dos assoalhos para matar as aranhas e escorpiões. Tudo ficou pronto e o campeonato poderia continuar... p-o-d-e-r-i-a! À noite o local ficou cheio de meninos e um monte de velas queimando por todos os lados, coladas diretas em cima daquelas tábuas centenárias, embebidas de Detefon, líquido, altamente inflamável. As tábuas pareciam pedir por uma faísca para se suicidarem de tão velhas e abandonadas que estavam! Virou um barril de pólvora, onde a molecada distraída não percebeu que algumas velas derreteram até o pé. O fogo alastrou-se pelas frestas, entre algumas tábuas, e a reação foi apenas muita correria. Eu e Marco Antônio resolvemos voltar..

— Cadê sua lanterna?
— Tá aqui.
— Liga.
— Pra quê?
— Vamos voltar.
— Tá louco!
— Mas se pegar fogo nisso tudo vai ficar bem pior!
— Você avisa o pai do Badinho que tá pegando fogo?
— Eu não!
— Então!

Um diálogo sem muita coragem, e muita dúvida, mas lembramos que havia duas torneiras na segunda porta logo após as salas do clube. Era uma espécie de lavabo. Tínhamos usado a água delas no dia anterior para lavar o piso, mas custou a jorrar, devido os canos estarem cheios de ar. Fomos por outro corredor lateral porque já havia alguma fumaça. Abrimos as torneiras que sopraram baforadas de ar e por sorte verteram. Pegamos água em umas nas latas que já estavam por lá durante a arrumação. Nem contamos quantas latas jogamos. Enquanto eu carregava água, Marco Antônio batia sua jaqueta de couro, molhada, sobre as chamas. Havia muita fumaça, mas conseguimos apagar o fogo, que nem estava tão alto. Queimava apenas nas frestas ainda úmidas pelo Detefon. Certamente iam tomar corpo e virar um incêndio de grandes proporções. Tossimos até quase botar o estômago pra fora de tanto fazer vômitos. Recuperados no fôlego, saímos e não havia nenhum moleque na rua.

— Cadê eles?
— Xisparam!
— Olha lá a água ainda caindo pela varanda.
— Se o aguaceiro vazar lá no armazém a gente tá no ferro!

Como era no terceiro andar a água não vazou. Escorreu pelas tábuas do piso com desnível para varanda e jorrou sobre a calçada. Sorte que ao escurecer pouca gente passava por ali. Ninguém percebeu. No outro dia levamos um escovão com palha de aço e  tentamos raspar a parte chamuscada, percebendo que nem queimou tanto assim, foi mais um susto e que poderíamos ter apenas abafado o fogo, batendo com nossos casacos, todos de uma vez, mas o pânico na noite elevava as dimensões das coisas. Se não tivéssemos voltado  poderia ter acontecido o pior. Quem reformou o prédio para o atual Solar do Rosário, com certeza deparou-se com esta parte mais escura no piso. Um começo de incêndio que poderia ter consumido não só o casarão, mas também as casas que eram todas agarradas a ele, e pelo calor que emanaria, até as casas da frente no outro lado da rua poderiam ser queimadas. Alexandre, o risadinha, morava numa delas, mas ele não estava neste dia.

A semana passou. A família do Senhor Abeylard deixou o casarão e mudou-se para e antigo quartel um pouco acima do largo do Rosário, próximo à Igreja São Francisco de Paula. Dias depois, uma outra família mudou-se para lá. E com a família, uma menina linda, mais velha do que eu uns três anos. Não era como as outras do bairro, que eram recatadas, polidas e de pouca conversa com meninos. A nova garota da vizinhança gostava de conversar e dar aquele sorriso maravilhoso. Eu viajava na manteiga de tão derretido que ficava. Mas ficava só na conversa. Porém, ao saber que ela ia todas as manhãs na padaria do Senhor Dico, a rotina lá em casa mudou.

— Que milagre é esse? Já de pé! Nem precisei chamar. — admirou-se a minha mãe, que normalmente chamava, uma, duas, três vezes, até pegar a minha bota debaixo da cama e me acordar de verdade, batendo com o salto bem no meio da testa.
— Que isso mãe?
— Essa botinha de juventude transviada. Deixa seu pai saber. Com que dinheiro comprou esta porcaria?  —- e lá vinha beliscão para confessar.

Depois que a garota passou a ir comprar pão na padaria, eu também, infalivelmente. Calculava o tempo bem certinho para encontrar com ela na esquina. Podia estar fazendo o frio que estivesse, mas eu ficava lá trincando de gelado, batendo queixo até ver que ela descera o Largo do Rosário. Só então eu descia a escadaria da Rua de Cima para encontrá-la casualmente chegando na padaria. Um dia, dois dias, espaçados, uma vez ou outra, tudo bem. Mas todos os dias, cronometradamente na hora exata, sem falhar, ela desconfiou e passou a jogar charme, sabendo que eu estava caidinho por ela.

— O pão vai sair só daqui dez minutos, gente! — avisava Senhor Dico.
— Tem pressa não Seu Dico. Tem tempo.

Podia levar quanto tempo fosse para o pão sair. Enquanto isso ficava de conversinha com ela.

— Vamos subir por lá! — disse ela um dia, sugerindo que fossemos conversando até a entrada da Rua de Cima. Era uma volta maior que eu achava conveniente. Passo de tartaruga, e ela, danadinha, gostava de apertar o pão quentinho contra os peitinhos já bem salientes.
— Assim você vai amassar o pão. — eu dizia.
— Mas é gostoso! É quentinho. — e ria também. — Ficamos mais íntimos e mais soltos.

E assim tornamos amigos, até o dia que resolvemos passar pelo caminho intermediário entre a Igreja do Rosário e a Casa do Senhor Domício.  E bem de frente à porta lateral da Igreja, que a gente parava e dava uns beijinhos, que foram ficando cada dia mais tórridos. Não havia pão que fosse servido nos cafés de ambas as casas sem que estivessem amassados e frios. E aquele lugar era o mesmo onde o Silvério levava as meninas para dar os amassos. Parecia propício e com o clima especial para isso.

— Você beija gostoso! — ela disse muitas vezes.
— Tô acostumado — vangloriei, mas ela percebia que eu era nu e cru, tanto quanto ela, que também descobrira o beijo comigo.

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Mas era só isso; ficamos nesse namorico matinal um bom tempo, fato que naturalmente me afastou um pouco das brincadeiras, gastando mais tempo pensando na namoradinha. Pegaram no meu pé, mas foi dor de cotovelo da meninada e vontade de estar no meu lugar. Era a minha primeira namoradinha e comecei a achar os meninos bem meninos.

Lembro-me bem que foi no mês de julho, quando eu e meus irmãos saímos de férias para casa de minha avó em Betim, ao voltar, eu estava com saudades, ansioso para encontrá-la e entregar-lhe um presente que custei a comprar com o dinheiro juntado o mês inteiro. Nas casas dos meus avós sentiram mudanças no meu comportamento.

— Noemi, esse menino tá quieto demais. Deve estar com "lumbriga. —  dizia meu avô à minha avó. — Melhor dar lombrigueiro pra ele. É lombriga! Tá cheio de "bixas".

Quando meu avô encasquetava com uma coisa era difícil convencê-lo o contrário. Misturou umas gotas da fedida creolina na água e me fez engolir. Se funcionava ou não, não sei.

Morto de saudades, nem bem entrei em casa em Ouro Preto e já saí correndo até a porta da casa da namoradinha —  ela já não morava mais lá — tinha se mudado. Foi como se arrancassem alguma coisa de dentro de mim. Fiquei sentado por horas no passeio de frente sem saber o que fazer e onde procurar. Perguntei no armazém, ninguém soube dizer, nem o amigo Sá Onça, que morava no prédio ao lado. Senti muita falta, fiquei aborrecido com a cidade, intolerante com a turma, entristecido de verdade. Sem endereço, WhatsApp, e-mail e internet, sem chances. A pessoa sumia e nunca mais se sabia dela. Mas superei, com saudades, mas as lembranças ficaram. Ela, não sei dizer.



Botinha linda, na moda, de salto, lançada pelos Beatles. Em Ouro Preto o primeiro a usar foi o Frederico, bem mais velho do que nós, cabeludo, andava sempre de jaqueta de couro e muito brigão. Era ele e Marco Antônio "Play Boy". Marco Antônio era gente fina demais — ambos ícones exemplos para nós meninos. As meninas os adoravam e percebi nessa época que elas não gostavam de rapazes muito parados e certinhos. No aniversário da minha irmã Marília, o Frederico, Fred, como gostava de ser chamado, entrou de sapo na festa, levou um disco dos beatles,  e dançou twist escandalosamente na sala de casa, rebolando até no chão. Eu não curtia muito os Beatles, meu ídolo era James Dean, que já havia morrido há oito anos, final precoce igual ao das divas.  Fiquei fissurado no filme  "Juventude Transviada",  que foi a minha referência. Era proibido para dezoito anos, mas o meu amigo Senhor João Trópia, deixava que eu entrasse de graça pela lateral do cinema, quando já haviam sido apagadas as luzes. Exatamente durante a música de prefixo. Permitia a minha entrada se eu estivesse só; com a turma não. Para quem não sabe, música de prefixo era aquela adotada pelo cinema, indicando que a seção já estava prestes a começar, deixando o ambiente à meia luz. Para mim indicava o momento exato de entrar agachado, escondendo-me do "lanterninha", que era o vigia responsável pela ronda nas fileiras,  afim de pegar gente beijando, ou com os pés nas poltronas, ou gritando. Minha amizade com Senhor João Trópia começou quando num dia de chuva, voltando da Rua Direita, o vi escorregando  perto da porta da "garapinha".  Corri até ele para socorrê-lo.

— Escorreguei no bagaço de cana. — disse ele, quando ajudei-o a levantar até subir as escadas do Cine Vila Rica. Daí em diante tive este privilégio de jamais pagar uma entrada de cinema. Eu assistia todos os filmes e tinha que ficar calado, sem espalhar nem para os amigos. Aquela era a condição e cumpri até quando mudei-me de Ouro Preto. E ele cumpriu também.

Com a evolução para pior do meu look, eu fatalmente  nem de longe ia parecer com James Dean.
Minha mãe chamava para ir na escola às seis da manhã, mas a minha preguiça era muito grande, custava a levantar, principalmente nos dias frios, quando eu saía da cama e olhava pelas venezianas. Era tanta neblina que não conseguia ver a casa dos Péret. A namoradinha não ia mais comprar pão e o motivo para levantar cedo não existia mais.  Contudo a mente tem as suas defesas e vai criando pontas de esquecimento, apagando até esmaecer completamente uma perda, uma lembrança. Contudo tem algumas coisas que permanecem em nossas mentes, adormecidas, e acordam quando a gente volta a um lugar, escuta uma música, ou sente um aroma. De uns dias para cá, depois que passei algumas vezes pelo Rosário, uma série de lembranças reavivaram.  Lembrei-me do barulho dos passos do pai da Shirley Xavier, nossa amiguinha que morava na Campina. Infalivelmente, assim que minha mãe chamava para aula, ele, todo encapotado, gola suspensa até no pescoço, encolhido com as mãos nos bolsos, passava na calçada fazendo barulho com sua pesada bota de biqueira de ferro. Eu sempre quis uma daquelas para jogar bola e não sofrer tanto no meio dos rapazes maiores e mais fortes do Colégio Arquidiocesano. Shirley tinha sete anos e muita responsabilidade. Enquanto a gente só brincava, ela, um toquinho de gente já tomava conta da irmanzinha e da casa, durante a ausência do pai. Na época nem dávamos importância, mas hoje admiro pessoas como ela. Não passa na cabeça de nenhum pai deixar um filho de sete anos responsável por alguma coisa. Assim era o Bairro do Rosário, povoado por gente responsável e gente sem responsabilidade nenhuma como nós, meninos.

 Shirley aos sete anos. 

— Achamos uma coisa! — disse Eduardo meu irmão chegando  com Vicente Gomes. Estavam eufóricos.
— Acharam o quê?
— Uma coisa, vem ver! — disse Vicente não aprovando muito a ideia. Era mais ajuizado e meu amigo do peito. Irmão mesmo. Fazíamos tudo junto e muitas coisas erradas que deixei de fazer  foi por conta da companhia. É meu caro amigo até hoje, assim como o Vinício Godoy, que continua o mesmo. Visitei-o e fiquei muito feliz em encontrá-lo com o mesmo senso de humor.

Não sei quantos cômodos havia no casarão, mas chegava perto de cinquenta. Conhecíamos cada pedaço, cada passagem, inclusive algumas secretas debaixo das escadas. O Vinício Godoy ao caminhar no segundo pavimento, pisou numa tábua de assoalho que se soltou, mostrando a sacaria de mantimentos estocada no armazém do Senhor José Ribeiro.

— Tenho uma ideia.
— Que ideia?
— Vamos pegar um lampião emprestado no armazém. Daqueles que usam lá no fundo quando acaba a luz. A gente pega, usa durante os jogos de botões e devolve.
— Melhor pegar um novo na caixa.
— Pode ser. Mas, temos que devolver antes de abrir o armazém de manhã.

Na primeira noite correu tudo bem. Na segunda também, até que ficou chato demais ficar levando aquele lampião de volta ao lugar. Pegamos um na caixa, definitivamente. Depois do lampião, na comemoração de aniversário do clube, pegamos guaranás, salame, doce de leite, até que um dia pegamos umas garrafas de conhaque e algumas de vinho chamado Nau sem Rumo. O vinho eu já conhecia, porque no casamento de uma tia ele foi o responsável por deixar todo mundo bêbado.O resultado depois da festa foi menino chegando em casa embriagado, fedendo álcool. Apanhavam, mas nem assim falavam.

— Vi umas balas de revolver lá! — disse Eduardo, meu irmão.
— Lá em casa tem um revólver. — sugeriu Vinício. —  É do meu pai.
— Será que a bala serve nele?
— Deve servir.

Pegamos a caixa de balas, Vinício levou o revólver e fomos para o caminho que leva do velho quartel até o cemitério da Igreja São José, atualmente a parte de trás do Solar do Rosário. Os alvos foram as revistas de TV intervalo. A meninada praticou tiro ao alvo vários dias até rachar o cano do revólver. E a coisa perdeu o controle. Cada um passou a entrar e sair do armazém quando desse na telha. Isso nos finais de semana ou após às 18 horas de qualquer dia. Não apenas nós, mas nem sei quantos fizeram ou quem fez. Até os irmãos mais novos do Marco Aurélio entraram na história — não tinham seis anos os pirralhos. Era menino andando com faca na cintura, vendendo os cascos de guaraná vazios no próprio armazém do Senhor José Ribeiro, até a a coisa avinagrar. Nós mais velhos sabíamos que ia dar encrenca, mais cedo do que mais tarde. Tentamos de todas as formas convencer a molecada do contrário, pregamos tábuas no buraco do assoalho, mas quando menos se esperava, olha lá um menino com um baita facão na cintura desfilando de frente o Armazém. Dito e feito! Bingo pra eles!
O Senhor José Ribeiro foi muito complacente; apenas comunicou aos nossos pais que tomaram a atitude condizente com a gravidade do episódio. Houve ressarcimentos e  muita surra.



Foram uns dois meses com a rua esvaziada de meninos, uma paz para os adultos. O clube desmontado, as portas do casarão pregadas de tábuas e muito castigo, fora a surra no lombo para muitos. Sorte lá em casa, que quando meu pai chegou de viagem, a chapa já havia esfriado e não apanhamos, dele.  Da minha mãe, coitada! Inchou até as mãos. Eu estava mais crescido e me pareceu que meu pai achou por bem aplicar outro tipo de castigo — me tirou da escola e me colocou no serviço — ora com ele, ora com meus tios — eu só tinha tempo para trabalhar, e não era em Ouro Preto! Fiquei longe da turma. Foi um castigo inteligente que durou uns dois anos, eu pulando de cidade em cidade, até mudarmos de Ouro Preto. Fiquei sabendo depois que a turma ficou muita calma. Vivi pensando que a má influência era a minha. E tive certeza há poucos dias, quando fui levar uns amigos para conhecer a Igreja do Roisário. O Mário, gruardião da igreja, brincou querendo dizer a verdade.

— Olha! Vocês tomem cuiodado com a companhia.

Anos depois, numa das minhas inúmeras visitas à cidade,  quando o armazém já havia mudado de lugar, encontrei o Senhor José Ribeiro na rua. Já estava bem mais velho, e ele deu umas boas risadas quando o cumprimentei e relembrei o episódio. Contei um pouco da minha vida e o que estava fazendo. Senti que ele gostou, mesmo sendo um senhor muito sério e de pouca conversa. Acho que ele nem se importou com o episódio, ou o fato de eu estar pedindo desculpas. Consegui perceber no fundo dos olhos dele, uma ponta de satisfação em ver que a rebeldia em mim ficou em grande parte só no menino, e que eu, quase adulto, tinha tomado jeito. Mas me olhou de cima em baixo, fez uma cara de... — Será que tomou jeito mesmo? — ao ver meu look passando pelos dezoito anos.


"Tomar jeito", depende do ponto de vista de quem analisa. Para mim eu havia tomado jeito e, mesmo não morando em Ouro Preto, voltava sempre à cidade, porque deixei impregnado nas ruas e nos becos um pouco da minha essência, e vice-versa, sentindo que a essência da cidade fazia parte de mim.

Hoje, mais de cinco décadas se passaram, estou vivenciando a cidade de Ouro Preto com mais frequência e mais permanência. Meus olhares, hoje são voltados para outras coisas, com sentimentos aflorados pelas experiências vividas. Dei as voltas que tinha que dar, amei e amo a quem tenho de amar, os filhos bem criados e com meus netos dando trabalho, não para mim. Tenho saudades recentes que adormecem com a neblina baixada durante a noite, e que me acorda com a visão das manhãs frias através da janela embaçada. O coração fica apertado, as reflexões são mais frequentes. Fiquei mais tolerante, mais velho. Dor de saudades recentes.

Senti vontade de escrever um pouco sobre aquele tempo, diluído no esquecimento de muitos, e que aqui revivo algumas partes apenas por simples exercício da memória. Um pouco de história sem expressão para o mundo e muito importante para mim, e também para alguns de meus amigos sensíveis. Vou continuar escrevendo, sem compromisso com a ordem cronológica dos acontecimentos. Será um vai e vem no tempo, sem data e nem hora, sem nominar  maioria dos autores das falas nos assuntos lembrados, como venho fazendo, sem muito cuidado com a redação.

Uma época realmente dourada, quando nos revelaram que a Terra era azul e que beijar é e continua sendo muito bom. E digo mais, o melhor beijo não é o primeiro e nem o segundo. O melhor é aquele quando você sente a alma da outra pessoa. Isso a gente pode descobrir em qualquer época. Eu fui encontrar mais de cinco décadas depois.Mas todo começo tem um fim. Faz parte da história de cada um de nós. O importante é recomeçar sempre após qualquer final.


Porque, para ser feliz, brincar é preciso!
Pois, desta vida nada levamos.
Tudo que tem peso é deixado para trás.
Os  pertences,
os sonhos impossíveis,
os prazeres.
A alma pesa menos de um grama.



Marcio N Amaral
outubro de 2015

* a maioria das fotos deste capítulo são de autoria desconhecida, capturadas na Internet.







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