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sábado, 31 de outubro de 2015

A próxima parada


Sempre que o vento estava a favor era possível escutar as badaladas do sino do relógio do Museu da Inconfidência. Foram cinco. Acordei cedo, mas não ao ponto de pegar meus pais dormindo. Já estavam de pé. Geralmente sou acordado pelas balançadas e os safanões da minha mãe, sempre atrasado para aula. Mas, é f'érias , e hoje vamos para o Morro do Gabriel. Não consigo e nunca procurei entender a relação da fazenda com o serviço do meu pai que trabalhava com mineração. Isso nunca importou! Me transcendo para um daqueles dias.

Que diabos vem este pensamento na minha cabeça a esta hora?  Olhei com desprezo total para o uniforme do Colégio Arquidiocesano, de cor caqui, com feitio horroroso, grosso, pesado, que se fizesse chuva ou sol éramos obrigados a vesti-lo sempre. Mas nada me aborrece hoje. Ficarei longe dele um mês. Que alívio! Entretanto, se meu uniforme pudesse falar ou reclamar de mim, faria isso com muita competência, pois eu judiava dele. Livre deste terno de colégio, a única coisa que continua me atormentando é o sapato da marca Verlon, de borracha, que cozinha os pés de tão quente. Ou congela de friagem conforme o dia.



A fazenda fica a trinta e cinco quilômetros de Ouro Preto, percorridos por trem até a estação de Hargreaves. De lá até a sede é uma tirada a pé de três quilômetros, que nem fazem cócegas em nossas panturrilhas de adolescentes, acostumadas nas ladeiras de Ouro Preto. "Gente, o trem sai as sete! Muda passo!" - meu pai repete a todo momento. É mês de julho e durante noite são necessários dois cobertores de lã, além do pijama bem grosso. As venezianas estão entoando o assovio das casas assombradas, levanto arrastando a preguiça, olho pelas frestas. A neblina deixa ver apenas alguns metros, mas posso perceber que o calçamento está orvalhado. A grama esparsa entre as pedras do calçamento estão branquinhas, cobertas pela geada. Veneziana cantando é sinal de vento, que combinado com o frio judia da pele. Mas isso não importa! Hoje não tenho a obrigação terrível de ir para o colégio. Estou livre das aulas de história ministradas pelo carrancudo Padre Carmélio, a matemática complicada do professor Benedito Xavier, que joga o giz na gente se estamos cochilando. A certeza de não ser atormentado pelo carimbo de compareceu ou faltou na minha caderneta escolar me deixa feliz. Vai ser essa mamata por mais vinte e nove dias, de pura estrepolia. Fora a preocupação com a escola vou ficar livre do pessoal da TFP - Tradição Família e Propriedade que, depois que participei de uma reunião, não me deixaram mais me paz. Uma tortura! Tomara que me esqueçam!

Somos quatro irmãos: dois mais novos, a irmã mais velha e um dando chutes na barriga da minha mãe, segundo uma conversa que flagrei entre ela e nossa vizinha. Em casa nunca tocaram nesse tipo de assunto, mas fiquei sabendo quando peguei um livro no guarda-roupas da minha mãe - "Nossa Vida Sexual". Interessantíssimo, pois vi uma mulher nua, porém jamais poderia imaginar que alguém tivesse cabelo entre as pernas. Parece uma barba enorme e enrolada. Lembrei-me do pirata Barba Negra de um livro que vi na biblioteca. Será que a Jane Mansfield tem essa cabeleira toda? Seria uma decepção. "O café está na mesa!" - minha mãe entra apressada no quarto e descobre dos cobertores meus dois irmãos menores. Um deles urinou na cama, de novo! Eu nem falo nada, porque de vez em quando até eu faço, quando esqueço de ir ao banheiro antes de dormir. Fico tão apertado que sonho que estou urinando. Aí já era!  Quando acontece não deixo ninguém me ver arrumando cama. Camuflo, viro o colchão para baixo, estendo a colcha sobre o lençol. Vai secar.


Pena que não posso levar a minha bicicleta MerckSwiss. Mas por outro lado na fazenda tem a Malhadinha, uma égua mansinha que nos leva para todo lado. Minha mãe avisa para enrolarmos bem o cachecol, enfiar o gorro até abaixo das orelhas para "não virar o vento". O impacto da mudança de temperatura é brusco, mas para sair de férias não é nenhum sacrifício, mesmo sendo uma boa caminhada do sobrado na Rua de Cima, no bairro do Rosário, até a estação do trem — são quase dois quilômetros. Meus pais vão andando normalmente pelas calçadas e nós disparados na frente. Até o caçula quer nos acompanhar. Quando excedemos na velocidade minha mãe já dá o tom: "vão arrebentar o nariz assim! E se machucarem vão apanhar!". Minha irmã torce para que caiamos. Somos o inferno da vida dela em casa, principalmente quando entramos no seu quarto para vermos se ela trouxe alguma coisa de interessante.


Mal a minha mãe acaba de falar; olha lá o moleque caçula estatelado no chão. Esfolou os joelhos e cotovelos nas pedras irregulares da calçada e o galo cantou com a pancada da testa. Caiu, esfolou, mas não chorou. Emburrado, com as sobrancelhas franzidas, apenas levanta e ficava olhando com cara de bravo, esperando que um dos irmãos esboce qualquer sorriso. Se percebesse alguém achando graça,ele caminhava para cima do engraçadinho,  para usar as armas que tinha - unhas e chute na canela. Não consigo me conter. Seguro a risada com a mão na boca, mas ao vê-lo com aquela cara de mau e todo arrebentado, a gargalhada sai disparada. "Foi você que mandou eu cair!" É o argumento dele. Uns puxões de orelhas em cada um e a caminhada prossegue. Logo após a descida do Largo do Rosário, passamos sobre a Ponte Seca. As luzes quase esmaecidas dos postes projetam as sombras que mais parecem fantasmas nos perseguindo, ora no chão, ora nas paredes e nos muros.


A a garoa cortante engana as voltas do cachecol, entra, pela blusa, gela as orelhas, as costelas.  Mais adiante descortina a igreja do Pilar no meio da neblina, mais densa ainda. Ela parece guardar a rua com sua imponência. Eu não consigo entender porque as pessoas projetam uma igreja tão importante escondendo a fachada principal atrás de algumas casas. Só depois de velho irei saber que que a frente original era no lado de trás da Igreja; mudaram não sei porquê. Escuto barulho de passos. Já não vamos mais à frente dos nossos pais. E se for o fantasma da Maria Pé de Chinelo? Mas é apenas o sacristão abrindo a porta lateral enquanto o relógio do museu toca seis badaladas. Vestido de preto ele parece um corvo. Está nos olhando de soslaio. Meu pai o cumprimenta e ele apenas acena a cabeça, notoriamente, sem a mínima vontade de falar. Hoje fico pensando que aquela criatura estava há tanto tempo fazendo a mesma coisa, que já tinha se aborrecido de escutar só "Deus que lhe pague!" ou "bom dia". Mas acho que em certo ponro ele está certo, porque a gente faz a conta e Deus é que tem que pagar.


A rua da estação é extensa. Mal viramos a esquina e vejo a porta da delegacia aberta. Tem um soldado debruçado sobre a mesa dormindo feito um urso hibernado. Que rua longa! Para nós que somos pequenos dá a impressão que ela é muito extensa. Da Igreja do Pilar até entramos na estação o vento faz questão de ajudar a garoa nos atormentar mais ainda. Na metade da extensão tem um casarão enorme, parecendo um palacete. É do pai da amiga de minha irmã, um industrial milionário de Ouro Preto, dono da imensa fábrica que vai da casa dele até à estação. Como é que uma pessoa pode dar conta de construir uma casa deste tamanho?









Enfim, a estação. Enquanto meu pai vai ao guichê comprar os bilhetes, esperamos. Entramos para plataforma de espera, onde existem alguns bancos - sentei em um deles - estão gelados. As pessoas vestem pesados casacos e ficam encolhidas. Alguns fumam e tossem. Brincamos de bafejar o ar para ver a condensação gás carbônico que sai dos nossos pulmões. Acho engraçado todos conversando e a fumaça saindo pela boca.

O chefe da estação bate o sino freneticamente. O trem vai chegar em poucos minutos. O barulho aumenta e lá está ela, a Maria Fumaça, soltando grossas baforadas que mais parecem rolos de neve embolando céu acima e se misturando com a neblina. Vai parando lentamente. A locomotiva fumega por todos os lados. Ao frear faz riçar as rodas de toda composição sobre os trilhos. Pára e solta um suspiro de fumaça branca que invade a plataforma. Acho aquilo bonito enquanto as fagulhas em brasa são cuspidas sobre o trilhos. O chefe da estação grita: "Senhores passageiros com destino à — Rodrigo Silva, Topázios, Tripuí, Hargreaves e adjacências, favor embarcar e tomar os seus lugares.



Sentamos. Um fedor horroroso está impregnado no vagão no qual viajaremos. Alguém vomitou e a catinga azeda espalhou-se e faz com que minha mãe tenha ânsias de vômito. Nós, os irmãos, seria apenas uma questão de tempo para colocarmos nossos bofes para fora, dependurados nas janelas e mareados pelo balanço do trem. "O chefe arrumou lugares no vagão de primeira"; fomos todos para lá. Mais confortável e não fede. Soa o apito, escutamos o barulho progressivo dos engates da composição. A Maria Fumaça faz força, bufa e logo ganhamos velocidade. Gosto de andar de trem, ver as coisas passarem e ansioso pela entrada no túnel. "Tirem a cabeça para dentro, fechem as janelas" - avisava meu pai. Só fui entender isso quando em uma outra viagem mais adiante não fechei. A fumaça lançada dentro do túnel invadiu janela adentro e pretejou tudo. Vamos no lenga-lenga do trem que bufa ainda mais na subida e eu fico repetindo, tentando sincronizar em coro - "Café com pão, manteiga não". Paramos em Rodrigo Silva. Meu pai desce e o vejo encontrar dois homens. Um é o magrelo Seu Zé da Paz e o outro o espanhol de apelido Espinha. Deve vir de Espiñosa, deduzo atualmente. Meu pai vai ao guichê, compra os bilhetes para eles e os dois homens embarcam no vagão fedorento. Logo o trem se põe em movimento. Pessoas desceram, pessoas subiram e me pergunto? Porque as pessoas tem que ficar indo e vindo. Não poderiam ficar paradas? Mas assim como nós estávamos indo, elas também. Dedução idiota.





O balanço lateral do trem é terrível. Se olharmos para longe na paisagem não sentimos tanto, mas se olharmos para frente, dentro do vagão, podemos perceber que através do vidro da porta entre as composições o vagão da frente e o de trás tem um deslocamento lateral enorme. O leite tomado no café da manhã sobe até a graganta várias vezes. Seguro, engulo com ardume que até fecho os olhos. Não foi desta vez, mas fico pensando — da próxima eu debruçarei na janela. Previsão que não demora nada. Debruçado, meu pai segura a minha perna e coloco o estômago do avesso. Sento na cadeira prostrado. Devo estar verde e meu irmão chora no assento de trás. O vômito entrou pela janela onde ele estava. O menino está todo sujo, chorando, com minha mãe passando lenço no rosto dele. Ela limpa e faz careta. "Éca!" - reclama. "Toda vez é essa porcariada!".





Enquanto o trem entra na última curva da nossa viagem, da janela posso ver a estação de Hargreaves. Tem pessoas esperando. De onde vieram? Nem casa perto tem. Fico indignado. Para onde vão? Se eu pudesse queria perguntar-lhes. O trem vai parando lentamente e vou observando aquelas pessoas na plataforma. Um menino da minha idade! Será o que ele estuda igual a mim? Um senhor me acena. Será que me conhece? Eu nunca o vi! Desembarcamos. Temos que aguardar o trem passar para atravessarmos a linha. Minha mãe senta e meu pai busca água. Mal deu o primeiro gole e foi a vez dela vomitar no chão da plataforma. Então é normal! Não são apenas meninos que vomitam. O chefe da estação bateu o sino e falou o nome das outras cidades para onde o trem ia levar aquelas pessoas. Chamou-me atenção para um homem despedindo-se de uma mulher. Nossa! Beijaram! Nunca havia visto um beijo na boca. Só nas revistas. Ela ficou chorando e olhando o trem sair lentamente. Porque ela chora? Será que ele voltará? Mas se ela está chorando é porque não vai voltar. Coitada!


Atravessamos a linha e pegamos a trilha para a fazenda. Olho para trás. A sineta da estação ecoa. O chefe grita os destinos de outros lugares os quais nunca fui. Os passageiros embarcam. A Maria fumaça começa a sua cadência lenta e pega velocidade. "Café com pão, manteiga não."







terça-feira, 27 de outubro de 2015

A Terra é Azul e nós queremos namorar.

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Marco Antônio sintonizou o pequeno radio Evadim, justamente quando o repórter noticiava sobre um russo que tinha viajado para o espaço. Na época eu não me importava com o calendário diário. Interessava-me apenas pelo sábado, domingo, feriado ou férias. Só fui me preocupar com isso quando reforçaram a ideia de que "Até 2000 chegará, de 2000 não passará". Em 1962 fiquei imaginando se eu viveria até o ano 2000 para ver o mundo acabar. Minha intenção era subir num lugar bem alto para observar a dizimação lá de cima. Talvez no alto da serra que dobra para Cachoeira das Andorinhas, ou atémesmo no Pico do Itacolomi, onde uma vez quase morri ao atravessar um desfiladeiro com dois trilhos. Ainda estava muito longe a tal profecia e eu tinha muito tempo. Me preocuparia mais adiante.

O fato da humanidade andar mais devagar, os feitos eram mais notórios e ficavam melhores registrados em nossas mentes. Naquele dia estávamos sentados no chafariz de frente o Cine Vila Rica, quando soubemos das últimas notícias sobre a corrida espacial entre Russia e Estados Unidos. A princípio eu pensava que a corrida eram dois foguetes lado a lado e aquele que chegasse primeiro seria o vencedor. Na verdade foi isso, mas de forma distribuída nas diversas tecnologias. Até adquirir entendimento eu mentalizava a coisa mais para o lado do gibi Flash Gordon no planeta Mongo.

Naquele dia tínhamos acabado de ser barrados na entrada do cinema. Nossa intenção era assistir um filme com a Jane Mansfield, do qual não me lembro o nome. Mas o cartaz era aquela coisa maravilhosa. Queríamos apenas ver as curvas secretas da diva, que fazia páreo na época para Sofia Loren, e para Marlyn Monroe que viria a falecer um ano mais tarde. E logo depois faleceu a própria Mansfield, em acidente de trânsito horroroso - ficou sem a linda cabeça. Gostávamos de todas, mas dela principalmente, porque não havia meio termo. Enquanto as outras faziam caras e bocas, a Jane mostrava o que queríamos ver. Ficávamos indignados com aquelas mortes estúpidas, e nos perguntando porque as pessoas famosas e bonitas morriam tão cedo.



No Brasil também havia mulheres tão bonitas quanto elas. Tonia Carrero não ficava trás. Era até mais bonita, porém ela e as outras brasileiras eram muito comportadas. Só pensavam em mostrar os cabelos e os rostos de bonecas. Muito anos mais tarde, quando eu já não morava em Ouro Preto, conheci a Tonia pessoalmente numa inauguração de teatro, onde meu amigo João Bennio era o teatrólogo, diretor da peça. Ele era também amigo de juventude da Tonia e a convidou para participar na estréia. Eu já tinha meus 22 anos e ela ainda estava maravilhosa, mesmo tendo o dobro da minha idade. Na ocasião, muito simpática, teceu elogios sobre a beleza das pessoas presentes.

— João Bennio, aqui nesta cidade tem mulheres lindas, mas os homens não ficam atrás —  e deu uma olhada de rabo de olhos para o meu lado, com aquele sorriso maroto e maravilhoso, que só ela sabia dar — coisa de novela.

Eu que estava perto, de olhos vidrados nela, quando de repente ela me puxou pelo braço e deu-me um abraço daqueles de não passar nem vento, que perdi até o rumo e o compasso. Parece que ela já estava meio altinha, mas nem posso afirmar, pois nem sei se ela bebia. Era muito simpática e brincalhona. O mais provável que não passou de um "vem cá menino!", só para me deixar sem jeito.  O João Bennio logo tratou de estragar o prazer e me separar da diva. Se o infeliz do João não tivesse azarado, certamente eu teria ficado mais amigo dela, pois estávamos numa chácara comemorando o sucesso da inauguração. Dela fiquei só com a lembrança e o perfume impregnado pelo abraço, sendo aquele encontro o único em minha vida que me aproximara de uma famosa deslumbrante.

Voltando a Ouro Preto. A conversa sobre a corrida espacial pegou rumo.

— Será que ele vai encontrar o Flash Gordon? — uma pergunta que surgiu. Não sei quem a fez, mas penso que foi o Nenéu, filho do Senhor Abeylard, que habitava pequena parte no terceiro andar do casarão em ruínas, hoje Solar do Rosário. Ele deveria ter na época uns sete anos.

— Cê é bobo, Nenéu. Flash Gordon é só na revista. Esse é comunista. Vai jogar bomba em todo mundo.
— Bobo é você. Vê lá se tem bomba pra cada pessoa de Ouro Preto!
— É pro mundo inteiro, Nenéu. Deixa de ser capiau da roça. É atômica. Seu pai já nos contou várias vezes o caso da tal bomba atômica que jogaram nos japoneses. Só duas, e arrebentou tudo por lá.
— Os comunistas até mataram aquela cachorrinha! — um outro comentou.
— Que cachorrinha?
— Aquela que foi no espaço!
— Ah! A tal da Laika. Lá na Ponte Seca tem uma com esse nome.

A conversa ia e vinha, sem pé nem cabeça. O Silvério era um cara de uns vinte poucos anos, forte, sarado, jogava bola no adro de trás da igreja do Rosário, sem camisa. As meninas iam todas para a mureta da Rua de Cima e ficavam suspirando.

— É lindo! — dizia uma.
-— É um pão! — comentavam na gíria que significava que o cara era quentinho e gostoso.

As meninas do Rosário e outros bairros na década de 60

As mães gritavam as meninas para irem para casa e parar de ver aquela "pouca vergonha!". De fato, a frase era apropriada e não ofendia de forma alguma, pois o Silvério não tinha vergonha nenhuma em andar quase pelado. Mas era uma frustração para as meninas, que tinham lá seus quatorze a quinze anos. Da mesma maneira que elas não davam bola pra gente, ele também nem olhava pra elas. Assim como nós gostávamos das atrizes de Hollywood, as meninas também gostavam dos galãs internacionais. E era aquela coisa idiota da gente gostar de quem está longe sem nenhuma chance. Minha irmã Marília era "gamada" no Rock Hudson, o cara da época, que destroçava corações. E era bonito mesmo, só que a gente como macho de verdade, não admitia. O problema é que as meninas usavam a referência de beleza deles para comparar com a nossa, diminuindo qualquer chance dos meninos do bairro com o sexo oposto. A Marília até escreveu uma carta para o fã clube dele nos Estados Unidos.

— Ai Meu Deus! Ai meu Deus! — assim que o carteiro passou no número 14 da Rua Gabriel Santos, hoje a República Sussego, 88, ela disparou escada acima naquela gritaria, que até Dona Brigida, a vizinha de baixo, perguntou do quintal para saber o que acontecera.





Rock Hudson
— Olha aqui! —  dizia a Marília, tremendo,  quase chorando,  mostrando a foto do Rock Hudson com uma dedicatória para ela. —  Ele mandou pra mim! Pra mim! E beijava aquela foto que era uma meléca.

Claro que ele nem viu a foto; o Fã Clube que mandou —  sabemos disso hoje. Mas fiquei com inveja. Imagina se a Jane me enviasse uma foto daquelas mostrando a peitaria. Minha mãe aprontaria um escândalo para eu sair do banheiro, mais do que já permanecia. Sei que aquela foto do galã ficou pregada por muito tempo na parede do quarto dela. Mas depois de muitos anos, o galã morreu vítima da Aids. Sua homossexualidade foi muito discutida na ocasião, mas além dele ter feito mais de 70 filmes, o avanço das pesquisas contra a Aids tiveram os resultados que existem hoje, graças à extensa campanha de prevenção e controle impulsionadas pelo seu nome. "Se até Rock Hudson teve, qualquer um pode ter. Previnam-se!". Louvável!

Mas voltando ao Rosário, novamente, Silvério gostava mesmo é de ficar amassando as jovens da idade dele pelos cantos do bairro, na escadaria atrás da Igreja do Rosário, principalmente. Escondíamos para ver como ele fazia, mas era muito escuro e só escutávamos a gemedeira.

—  Ele está batendo nela. —  dizia um.
—  Que batendo o quê! Tá é beijando!
—  Beijando? Que beijando o quê! Ela tá gemendo. Tá doendo!
—  Uai, beijando noutro lugar, uai! Tá é gostando.
—  Que lugar que vai beijar se não for na boca. Cê é besta?
—  Lá! Beijando lá! Já vi numa revistinha no colégio, daquele tal de Zefiro.
—  Cê viu?
—  Vi! Os estudantes internos do Arquidiocesano trazem lá do Rio de Janeiro. Mostra tudo. Beijar lá chma "polaca".
—  Polaca?
— É! As polonesas gostam demais!
— Eu ein!




Por curiosidade eu procurei alguma coisa do Zefiro para ilustrar e acreditem, achei um site com todas as obras dele. Historicamente tem imenso valor. Por muitos anos fez parte da literatura pornô de todos os brasileiros.
Enquanto caminhávamos para o nosso Clube o assunto continuava. Sei que o Vicente Gomes gostava de pegar no meu pé e vice-versa. Ele me fez uma série de indagações, não me lembro bem das palavras mas resultou em gozação.

—  Cê viu? Marcinho, você já beijou uma?
—  Cê viu? Uma o quê? Lá em baixo?
—  Não, sô! Na boca!
—  Claro, né!
—  Quem?
— Ah! Não vou falar.
— Beijou nada! Só beijou medalha de santinha de Nossa Senhora. — e a risada era geral.

Vicente Gomes na adolescência.
Beija, não beija, foi o tema do parlatório até chegamos à porta do casarão. O imenso prédio, de cor ocre, no Bairro do Rosário que, mesmo em estado lastimável, não perdera a imponência.  Construído para funcionar o Hotel Monteiro, os proprietários tiveram o azar pela transferência da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte. Evadiu-se todo mundo para nova capital e o negócio foi à banca rota. Quase cem anos se passaram e o hotel virou um mausoléu em ruínas, com a sua maior parte totalmente comprometida. Na época, estava em aproveitamento apenas o térreo, onde vinha funcionando o enorme e próspero Armazém do Senhor José Ribeiro.  Também eram aproveitados alguns cômodos de frente para casa do Vinício Godoy, na Rua de Cima, habitados pela família dos Fortes, que logo se mudou. Na outra extremidade, em poucos cômodos no terceiro andar, moravam Marco Aurélio, Badinho, Nenéu, Pedrinho, os dois irmãos gêmeos pequenos e dois irmãos adultos, filhos do Senhor Abeylard, o pracinha correspondente da Segunda Grande Guerra. Pouco tempo depois saíram para um prédio de um antigo quartel, dando lugar à outra família, onde mudou-se uma garota que atiçava o meu libido. Esta não vou citar o nome porque o "afair" merece ser contado mais tarde.

Influenciados pelos quadrinhos da revista Luluzinha, especialmente o Clube do Bolinha, no segundo andar do casarão, fundamos nosso clube de meninos, em duas espaçosas salas, onde guardávamos e fazíamos de tudo. Desde fantasias de carnaval de rua, carrinhos de rolimã, coleção de revistas e realização dos campeonatos com jogos de botão, muito bem organizados pelo Marco Antônio Maia, com tabela, primeiro e segundo turnos. Nenhum adulto sabia do clube, apenas nós meninos, até que num dia azarento,  um dos moleques fez xixi no assoalho do cômodo ao lado, vazando pelas frestas em cima da mesa de contabilidade do armazém. Fatalmente ficamos sem a sede do clube, mas era tão grande o prédio que escolhemos outras salas nos lugares com mais risco de desabamento, pois lá seria o lugar mais improvável de nos descobrir. O novo espaço para o clube passou a funcionar bem. Seria perfeito se existisse a energia elétrica. Ficamos muito indignados por terem acabado com nosso clube anterior, que possuía energia elétrica disponível e no atual tínhamos que providenciar um bom lampião a gás, pois era à noite que acontecia a maioria das partidas do campeonato. Isso, sem falar na dificuldade para chegar até o clube, no meio de escadas caindo e tábuas que se soltavam.

O empreendimento Solar do Rosário salvou um dos mais belos prédios de estilo colonial no Brasil.

— Porque não fazemos o campeonato durante o dia?
—Tem que ser a noite! - justificava Marco Antônio, que era o organizador.
— Qual a diferença? De dia nem precisamos de energia.
— Já viu campeonato só de dia? Na TV é à noite, e no rádio também.

Ele era muito detalhista. Enquanto jogávamos botão, ligava o rádio à pilha nos jogos do campeonato do Rio ou de Minas. E assim criava-se aquela atmosfera animada em torno da mesa. Tinha até um fundamento.

O casarão do Rosário, onde ficava a sede do nosso clube.

— Com que dinheiro vamos comprar um lampião? — surgiu a questão.
— Uai! Quando a gente pegar as contribuições na hora da missa a gente guarda um pouco. — sugeriram.
— Ah, não! Da igreja não! Deus castiga. Padre Simões é legal demais!
— Castiga nada. A gente ajuda na missa todo domingo e nem muito obrigado a gente ganha dele.

Era uma boa ideia, mas não ia dar certo. O sacristão ficava de olho quando passávamos a sacolinha recolhendo. Mas tínhamos urgência da iluminação pelo fato de termos parado o campeonato de botões.

— A gente acende vela!
— Vela não dá! Não ilumina nada.
— A gente acende um monte delas e espalha pela sala.
— É! Espalhando bem, umas vinte, aí vai dar.



Velas cada um de nós tinha em casa sobrando, pois vira e mexe, a luz da Companhia Ouropretana nos deixava no blackout. Limpamos bem o lugar, gastamos muito Detefon líquido nas frestas dos assoalhos para matar as aranhas e escorpiões. Tudo ficou pronto e o campeonato poderia continuar... p-o-d-e-r-i-a! À noite o local ficou cheio de meninos e um monte de velas queimando por todos os lados, coladas diretas em cima daquelas tábuas centenárias, embebidas de Detefon, líquido, altamente inflamável. As tábuas pareciam pedir por uma faísca para se suicidarem de tão velhas e abandonadas que estavam! Virou um barril de pólvora, onde a molecada distraída não percebeu que algumas velas derreteram até o pé. O fogo alastrou-se pelas frestas, entre algumas tábuas, e a reação foi apenas muita correria. Eu e Marco Antônio resolvemos voltar..

— Cadê sua lanterna?
— Tá aqui.
— Liga.
— Pra quê?
— Vamos voltar.
— Tá louco!
— Mas se pegar fogo nisso tudo vai ficar bem pior!
— Você avisa o pai do Badinho que tá pegando fogo?
— Eu não!
— Então!

Um diálogo sem muita coragem, e muita dúvida, mas lembramos que havia duas torneiras na segunda porta logo após as salas do clube. Era uma espécie de lavabo. Tínhamos usado a água delas no dia anterior para lavar o piso, mas custou a jorrar, devido os canos estarem cheios de ar. Fomos por outro corredor lateral porque já havia alguma fumaça. Abrimos as torneiras que sopraram baforadas de ar e por sorte verteram. Pegamos água em umas nas latas que já estavam por lá durante a arrumação. Nem contamos quantas latas jogamos. Enquanto eu carregava água, Marco Antônio batia sua jaqueta de couro, molhada, sobre as chamas. Havia muita fumaça, mas conseguimos apagar o fogo, que nem estava tão alto. Queimava apenas nas frestas ainda úmidas pelo Detefon. Certamente iam tomar corpo e virar um incêndio de grandes proporções. Tossimos até quase botar o estômago pra fora de tanto fazer vômitos. Recuperados no fôlego, saímos e não havia nenhum moleque na rua.

— Cadê eles?
— Xisparam!
— Olha lá a água ainda caindo pela varanda.
— Se o aguaceiro vazar lá no armazém a gente tá no ferro!

Como era no terceiro andar a água não vazou. Escorreu pelas tábuas do piso com desnível para varanda e jorrou sobre a calçada. Sorte que ao escurecer pouca gente passava por ali. Ninguém percebeu. No outro dia levamos um escovão com palha de aço e  tentamos raspar a parte chamuscada, percebendo que nem queimou tanto assim, foi mais um susto e que poderíamos ter apenas abafado o fogo, batendo com nossos casacos, todos de uma vez, mas o pânico na noite elevava as dimensões das coisas. Se não tivéssemos voltado  poderia ter acontecido o pior. Quem reformou o prédio para o atual Solar do Rosário, com certeza deparou-se com esta parte mais escura no piso. Um começo de incêndio que poderia ter consumido não só o casarão, mas também as casas que eram todas agarradas a ele, e pelo calor que emanaria, até as casas da frente no outro lado da rua poderiam ser queimadas. Alexandre, o risadinha, morava numa delas, mas ele não estava neste dia.

A semana passou. A família do Senhor Abeylard deixou o casarão e mudou-se para e antigo quartel um pouco acima do largo do Rosário, próximo à Igreja São Francisco de Paula. Dias depois, uma outra família mudou-se para lá. E com a família, uma menina linda, mais velha do que eu uns três anos. Não era como as outras do bairro, que eram recatadas, polidas e de pouca conversa com meninos. A nova garota da vizinhança gostava de conversar e dar aquele sorriso maravilhoso. Eu viajava na manteiga de tão derretido que ficava. Mas ficava só na conversa. Porém, ao saber que ela ia todas as manhãs na padaria do Senhor Dico, a rotina lá em casa mudou.

— Que milagre é esse? Já de pé! Nem precisei chamar. — admirou-se a minha mãe, que normalmente chamava, uma, duas, três vezes, até pegar a minha bota debaixo da cama e me acordar de verdade, batendo com o salto bem no meio da testa.
— Que isso mãe?
— Essa botinha de juventude transviada. Deixa seu pai saber. Com que dinheiro comprou esta porcaria?  —- e lá vinha beliscão para confessar.

Depois que a garota passou a ir comprar pão na padaria, eu também, infalivelmente. Calculava o tempo bem certinho para encontrar com ela na esquina. Podia estar fazendo o frio que estivesse, mas eu ficava lá trincando de gelado, batendo queixo até ver que ela descera o Largo do Rosário. Só então eu descia a escadaria da Rua de Cima para encontrá-la casualmente chegando na padaria. Um dia, dois dias, espaçados, uma vez ou outra, tudo bem. Mas todos os dias, cronometradamente na hora exata, sem falhar, ela desconfiou e passou a jogar charme, sabendo que eu estava caidinho por ela.

— O pão vai sair só daqui dez minutos, gente! — avisava Senhor Dico.
— Tem pressa não Seu Dico. Tem tempo.

Podia levar quanto tempo fosse para o pão sair. Enquanto isso ficava de conversinha com ela.

— Vamos subir por lá! — disse ela um dia, sugerindo que fossemos conversando até a entrada da Rua de Cima. Era uma volta maior que eu achava conveniente. Passo de tartaruga, e ela, danadinha, gostava de apertar o pão quentinho contra os peitinhos já bem salientes.
— Assim você vai amassar o pão. — eu dizia.
— Mas é gostoso! É quentinho. — e ria também. — Ficamos mais íntimos e mais soltos.

E assim tornamos amigos, até o dia que resolvemos passar pelo caminho intermediário entre a Igreja do Rosário e a Casa do Senhor Domício.  E bem de frente à porta lateral da Igreja, que a gente parava e dava uns beijinhos, que foram ficando cada dia mais tórridos. Não havia pão que fosse servido nos cafés de ambas as casas sem que estivessem amassados e frios. E aquele lugar era o mesmo onde o Silvério levava as meninas para dar os amassos. Parecia propício e com o clima especial para isso.

— Você beija gostoso! — ela disse muitas vezes.
— Tô acostumado — vangloriei, mas ela percebia que eu era nu e cru, tanto quanto ela, que também descobrira o beijo comigo.

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Mas era só isso; ficamos nesse namorico matinal um bom tempo, fato que naturalmente me afastou um pouco das brincadeiras, gastando mais tempo pensando na namoradinha. Pegaram no meu pé, mas foi dor de cotovelo da meninada e vontade de estar no meu lugar. Era a minha primeira namoradinha e comecei a achar os meninos bem meninos.

Lembro-me bem que foi no mês de julho, quando eu e meus irmãos saímos de férias para casa de minha avó em Betim, ao voltar, eu estava com saudades, ansioso para encontrá-la e entregar-lhe um presente que custei a comprar com o dinheiro juntado o mês inteiro. Nas casas dos meus avós sentiram mudanças no meu comportamento.

— Noemi, esse menino tá quieto demais. Deve estar com "lumbriga. —  dizia meu avô à minha avó. — Melhor dar lombrigueiro pra ele. É lombriga! Tá cheio de "bixas".

Quando meu avô encasquetava com uma coisa era difícil convencê-lo o contrário. Misturou umas gotas da fedida creolina na água e me fez engolir. Se funcionava ou não, não sei.

Morto de saudades, nem bem entrei em casa em Ouro Preto e já saí correndo até a porta da casa da namoradinha —  ela já não morava mais lá — tinha se mudado. Foi como se arrancassem alguma coisa de dentro de mim. Fiquei sentado por horas no passeio de frente sem saber o que fazer e onde procurar. Perguntei no armazém, ninguém soube dizer, nem o amigo Sá Onça, que morava no prédio ao lado. Senti muita falta, fiquei aborrecido com a cidade, intolerante com a turma, entristecido de verdade. Sem endereço, WhatsApp, e-mail e internet, sem chances. A pessoa sumia e nunca mais se sabia dela. Mas superei, com saudades, mas as lembranças ficaram. Ela, não sei dizer.



Botinha linda, na moda, de salto, lançada pelos Beatles. Em Ouro Preto o primeiro a usar foi o Frederico, bem mais velho do que nós, cabeludo, andava sempre de jaqueta de couro e muito brigão. Era ele e Marco Antônio "Play Boy". Marco Antônio era gente fina demais — ambos ícones exemplos para nós meninos. As meninas os adoravam e percebi nessa época que elas não gostavam de rapazes muito parados e certinhos. No aniversário da minha irmã Marília, o Frederico, Fred, como gostava de ser chamado, entrou de sapo na festa, levou um disco dos beatles,  e dançou twist escandalosamente na sala de casa, rebolando até no chão. Eu não curtia muito os Beatles, meu ídolo era James Dean, que já havia morrido há oito anos, final precoce igual ao das divas.  Fiquei fissurado no filme  "Juventude Transviada",  que foi a minha referência. Era proibido para dezoito anos, mas o meu amigo Senhor João Trópia, deixava que eu entrasse de graça pela lateral do cinema, quando já haviam sido apagadas as luzes. Exatamente durante a música de prefixo. Permitia a minha entrada se eu estivesse só; com a turma não. Para quem não sabe, música de prefixo era aquela adotada pelo cinema, indicando que a seção já estava prestes a começar, deixando o ambiente à meia luz. Para mim indicava o momento exato de entrar agachado, escondendo-me do "lanterninha", que era o vigia responsável pela ronda nas fileiras,  afim de pegar gente beijando, ou com os pés nas poltronas, ou gritando. Minha amizade com Senhor João Trópia começou quando num dia de chuva, voltando da Rua Direita, o vi escorregando  perto da porta da "garapinha".  Corri até ele para socorrê-lo.

— Escorreguei no bagaço de cana. — disse ele, quando ajudei-o a levantar até subir as escadas do Cine Vila Rica. Daí em diante tive este privilégio de jamais pagar uma entrada de cinema. Eu assistia todos os filmes e tinha que ficar calado, sem espalhar nem para os amigos. Aquela era a condição e cumpri até quando mudei-me de Ouro Preto. E ele cumpriu também.

Com a evolução para pior do meu look, eu fatalmente  nem de longe ia parecer com James Dean.
Minha mãe chamava para ir na escola às seis da manhã, mas a minha preguiça era muito grande, custava a levantar, principalmente nos dias frios, quando eu saía da cama e olhava pelas venezianas. Era tanta neblina que não conseguia ver a casa dos Péret. A namoradinha não ia mais comprar pão e o motivo para levantar cedo não existia mais.  Contudo a mente tem as suas defesas e vai criando pontas de esquecimento, apagando até esmaecer completamente uma perda, uma lembrança. Contudo tem algumas coisas que permanecem em nossas mentes, adormecidas, e acordam quando a gente volta a um lugar, escuta uma música, ou sente um aroma. De uns dias para cá, depois que passei algumas vezes pelo Rosário, uma série de lembranças reavivaram.  Lembrei-me do barulho dos passos do pai da Shirley Xavier, nossa amiguinha que morava na Campina. Infalivelmente, assim que minha mãe chamava para aula, ele, todo encapotado, gola suspensa até no pescoço, encolhido com as mãos nos bolsos, passava na calçada fazendo barulho com sua pesada bota de biqueira de ferro. Eu sempre quis uma daquelas para jogar bola e não sofrer tanto no meio dos rapazes maiores e mais fortes do Colégio Arquidiocesano. Shirley tinha sete anos e muita responsabilidade. Enquanto a gente só brincava, ela, um toquinho de gente já tomava conta da irmanzinha e da casa, durante a ausência do pai. Na época nem dávamos importância, mas hoje admiro pessoas como ela. Não passa na cabeça de nenhum pai deixar um filho de sete anos responsável por alguma coisa. Assim era o Bairro do Rosário, povoado por gente responsável e gente sem responsabilidade nenhuma como nós, meninos.

 Shirley aos sete anos. 

— Achamos uma coisa! — disse Eduardo meu irmão chegando  com Vicente Gomes. Estavam eufóricos.
— Acharam o quê?
— Uma coisa, vem ver! — disse Vicente não aprovando muito a ideia. Era mais ajuizado e meu amigo do peito. Irmão mesmo. Fazíamos tudo junto e muitas coisas erradas que deixei de fazer  foi por conta da companhia. É meu caro amigo até hoje, assim como o Vinício Godoy, que continua o mesmo. Visitei-o e fiquei muito feliz em encontrá-lo com o mesmo senso de humor.

Não sei quantos cômodos havia no casarão, mas chegava perto de cinquenta. Conhecíamos cada pedaço, cada passagem, inclusive algumas secretas debaixo das escadas. O Vinício Godoy ao caminhar no segundo pavimento, pisou numa tábua de assoalho que se soltou, mostrando a sacaria de mantimentos estocada no armazém do Senhor José Ribeiro.

— Tenho uma ideia.
— Que ideia?
— Vamos pegar um lampião emprestado no armazém. Daqueles que usam lá no fundo quando acaba a luz. A gente pega, usa durante os jogos de botões e devolve.
— Melhor pegar um novo na caixa.
— Pode ser. Mas, temos que devolver antes de abrir o armazém de manhã.

Na primeira noite correu tudo bem. Na segunda também, até que ficou chato demais ficar levando aquele lampião de volta ao lugar. Pegamos um na caixa, definitivamente. Depois do lampião, na comemoração de aniversário do clube, pegamos guaranás, salame, doce de leite, até que um dia pegamos umas garrafas de conhaque e algumas de vinho chamado Nau sem Rumo. O vinho eu já conhecia, porque no casamento de uma tia ele foi o responsável por deixar todo mundo bêbado.O resultado depois da festa foi menino chegando em casa embriagado, fedendo álcool. Apanhavam, mas nem assim falavam.

— Vi umas balas de revolver lá! — disse Eduardo, meu irmão.
— Lá em casa tem um revólver. — sugeriu Vinício. —  É do meu pai.
— Será que a bala serve nele?
— Deve servir.

Pegamos a caixa de balas, Vinício levou o revólver e fomos para o caminho que leva do velho quartel até o cemitério da Igreja São José, atualmente a parte de trás do Solar do Rosário. Os alvos foram as revistas de TV intervalo. A meninada praticou tiro ao alvo vários dias até rachar o cano do revólver. E a coisa perdeu o controle. Cada um passou a entrar e sair do armazém quando desse na telha. Isso nos finais de semana ou após às 18 horas de qualquer dia. Não apenas nós, mas nem sei quantos fizeram ou quem fez. Até os irmãos mais novos do Marco Aurélio entraram na história — não tinham seis anos os pirralhos. Era menino andando com faca na cintura, vendendo os cascos de guaraná vazios no próprio armazém do Senhor José Ribeiro, até a a coisa avinagrar. Nós mais velhos sabíamos que ia dar encrenca, mais cedo do que mais tarde. Tentamos de todas as formas convencer a molecada do contrário, pregamos tábuas no buraco do assoalho, mas quando menos se esperava, olha lá um menino com um baita facão na cintura desfilando de frente o Armazém. Dito e feito! Bingo pra eles!
O Senhor José Ribeiro foi muito complacente; apenas comunicou aos nossos pais que tomaram a atitude condizente com a gravidade do episódio. Houve ressarcimentos e  muita surra.



Foram uns dois meses com a rua esvaziada de meninos, uma paz para os adultos. O clube desmontado, as portas do casarão pregadas de tábuas e muito castigo, fora a surra no lombo para muitos. Sorte lá em casa, que quando meu pai chegou de viagem, a chapa já havia esfriado e não apanhamos, dele.  Da minha mãe, coitada! Inchou até as mãos. Eu estava mais crescido e me pareceu que meu pai achou por bem aplicar outro tipo de castigo — me tirou da escola e me colocou no serviço — ora com ele, ora com meus tios — eu só tinha tempo para trabalhar, e não era em Ouro Preto! Fiquei longe da turma. Foi um castigo inteligente que durou uns dois anos, eu pulando de cidade em cidade, até mudarmos de Ouro Preto. Fiquei sabendo depois que a turma ficou muita calma. Vivi pensando que a má influência era a minha. E tive certeza há poucos dias, quando fui levar uns amigos para conhecer a Igreja do Roisário. O Mário, gruardião da igreja, brincou querendo dizer a verdade.

— Olha! Vocês tomem cuiodado com a companhia.

Anos depois, numa das minhas inúmeras visitas à cidade,  quando o armazém já havia mudado de lugar, encontrei o Senhor José Ribeiro na rua. Já estava bem mais velho, e ele deu umas boas risadas quando o cumprimentei e relembrei o episódio. Contei um pouco da minha vida e o que estava fazendo. Senti que ele gostou, mesmo sendo um senhor muito sério e de pouca conversa. Acho que ele nem se importou com o episódio, ou o fato de eu estar pedindo desculpas. Consegui perceber no fundo dos olhos dele, uma ponta de satisfação em ver que a rebeldia em mim ficou em grande parte só no menino, e que eu, quase adulto, tinha tomado jeito. Mas me olhou de cima em baixo, fez uma cara de... — Será que tomou jeito mesmo? — ao ver meu look passando pelos dezoito anos.


"Tomar jeito", depende do ponto de vista de quem analisa. Para mim eu havia tomado jeito e, mesmo não morando em Ouro Preto, voltava sempre à cidade, porque deixei impregnado nas ruas e nos becos um pouco da minha essência, e vice-versa, sentindo que a essência da cidade fazia parte de mim.

Hoje, mais de cinco décadas se passaram, estou vivenciando a cidade de Ouro Preto com mais frequência e mais permanência. Meus olhares, hoje são voltados para outras coisas, com sentimentos aflorados pelas experiências vividas. Dei as voltas que tinha que dar, amei e amo a quem tenho de amar, os filhos bem criados e com meus netos dando trabalho, não para mim. Tenho saudades recentes que adormecem com a neblina baixada durante a noite, e que me acorda com a visão das manhãs frias através da janela embaçada. O coração fica apertado, as reflexões são mais frequentes. Fiquei mais tolerante, mais velho. Dor de saudades recentes.

Senti vontade de escrever um pouco sobre aquele tempo, diluído no esquecimento de muitos, e que aqui revivo algumas partes apenas por simples exercício da memória. Um pouco de história sem expressão para o mundo e muito importante para mim, e também para alguns de meus amigos sensíveis. Vou continuar escrevendo, sem compromisso com a ordem cronológica dos acontecimentos. Será um vai e vem no tempo, sem data e nem hora, sem nominar  maioria dos autores das falas nos assuntos lembrados, como venho fazendo, sem muito cuidado com a redação.

Uma época realmente dourada, quando nos revelaram que a Terra era azul e que beijar é e continua sendo muito bom. E digo mais, o melhor beijo não é o primeiro e nem o segundo. O melhor é aquele quando você sente a alma da outra pessoa. Isso a gente pode descobrir em qualquer época. Eu fui encontrar mais de cinco décadas depois.Mas todo começo tem um fim. Faz parte da história de cada um de nós. O importante é recomeçar sempre após qualquer final.


Porque, para ser feliz, brincar é preciso!
Pois, desta vida nada levamos.
Tudo que tem peso é deixado para trás.
Os  pertences,
os sonhos impossíveis,
os prazeres.
A alma pesa menos de um grama.



Marcio N Amaral
outubro de 2015

* a maioria das fotos deste capítulo são de autoria desconhecida, capturadas na Internet.







segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Bairro do Rosário




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Ouro Preto, Anos 60


Durante a década de 60, o número 14 da Rua Gabriel Santos, no bairro do Rosário, foi residência da nossa família. Atualmente o sobrado agora tem o número 88 e é ocupado como república feminina, cujo nome é bem apropriado para o lugar - Sussego. Lindo imóvel colonial de esquina, de dois andares, com vista privilegiada. Acredito até que seja o único imóvel do conjunto histórico da cidade com um belo alpendre de piso decorado em azulejos hidráulicos, iguais aos que cobrem grande parte do piso da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Segundo o Mário, guardião zelador da igreja, o vigário que morou no sobrado antes de nós e de outros, resolveu trocar o piso da Igreja e, tendo uma boa sobra do material, aproveitou e decorou o alpendre com esta obra de arte.


Rua de Cima - foto de Luara Viana Athayde.
"Rua de Cima", era assim que ela era mais conhecida, por ser uma via em patamar suspenso à rua que ladeia a igreja. Ela era bem mais rústica do que na atualidade. Tinha calçamento com pedras irregulares entremeadas com grama, proporcionando uma atmosfera mais bucólica à paisagem, sendo único inconveniente para a maioria dos passantes, algumas poças d'água que se formavam em época de chuvas, mas para nós meninos era até muito divertido sair correndo e bater os pés bem no meio delas para molhar os colegas. Foi num dia chuvoso, com a rua repleta de poças, quando uma Station Wagon Ford 47, com motivos laterais em madeira, entrou na Rua de Cima buzinando e piscando as luzes freneticamente. Bolinha, o cachorrinho da Dona Luluta, proprietária da Escola de Comércio, que já era escandaloso de natureza, quase surtou de tanto latir para o monstro mecânico. A vizinhança apinhou-se nas janelas, curiosa por tanto barulho provocado pelo potente motor de seis cilindros da bela perua. Rogério Péret, que estava na varanda do chalé, rapidamente desceu para frente da casa. Fiz o mesmo.




— É meu pai! — disse com euforia.
— E esse carrão? — perguntei.
— Compramos! — sorriu satisfeito.

Logo a família Péret inteira foi para rua, menos o João Marcos, irmão mais velho, que era muito sistemático. Até a Cristina, louríssima, lindíssima, inspiração inalcançável de todos nós, também apareceu para ver. Não sabíamos se olhávamos para Cristina ou para a Perua vindo aos solavancos no calçamento e espirrando água por todos os lados. O simpático senhor Jefferson Péret, comerciante relojoeiro tradicional em Ouro Preto, que mais parecia uma personagem destas de contos de fadas, empolgado, freou bruscamente aquela máquina potente, desceu do veículo e bateu no capô.

— Gostaram? — perguntou.

Quem havia de não gostar? Era o primeiro veículo da Rua de Cima, que eu me lembro. Além dele veio depois a Rural Willys do Senhor Vicente Godoy, pai do nosso amigo Vinício. Comprou zero km! Não era para qualquer bico e acreditem ou não, ele aprendeu a dirigi-la na estreita Rua de Cima mesmo, indo e vindo repetidamente, arriscando-se nas manobras em frente à minha casa, e ao trocar as marchas a ré para manobrar, passava muito perto de despencar-se uns três metros abaixo no quintal dos Péret. 

Ilustrativo da Rural Wyllys da família Godoy.
Era grande novidade aquela rural verde e branco, de beleza reluzente com linhas arrojadas! Havia também um carro bege que ficava sempre estacionado na entrada da rua, marca Fissore, e que jamais o vi mover-se. Fora estes, havia o Aero Willys Itamaraty do Senhor Domício, usado como Taxi, o mais moderno carro de Ouro Preto. Fazia concorrência aos Chevrolets 48, verdes, do Padre Rocha, também usados como taxi, sempre estacionados ao lado da Casa dos Contos. Somando esta frota tinha o encantador jeep de guerra, ano 51 do senhor Abeylard e a Vemaguete do Padre Mendes, esta última, muito barulhenta, que pipocava o motor e espirrava para subir as ladeiras com seus dois cilindros de potência em motor de dois tempos.


Início dos ano 60, família do autor, de bermuda preta, de frente ao sobrado na Rua de Cima.
A pacata Rua de Cima onde o maior trânsito era da tropa de burros de carga do Senhor Arlindo, uma vez por semana, nunca mais foi a mesma. Era a modernidade trazendo aquelas duas maravilhas motorizadas para nossa admiração, ao mesmo tempo medo, pois, quando víamos o Senhor Vicente chegando da Escola de Farmácia em seu bólido verdejante, logo subíamos na mureta da rua ou nas calçadas próximas das casas afim de nos protegermos. Na verdade, em Ouro Preto sobrava espaço e eram poucos os veículos transitando. 

A família Péret foi referência em muitas coisas que deram em mim o empurrão vocacional pelos rumos que escolhi e andei. Com certeza, Rogério, uns quatro anos mais velho do que eu, e meu vizinho de janela, foi responsável por influenciar-me nas atividades de aviação que segui depois que caí no mundo. 

 Marcinho, chega aí! — gritava Péret da varanda do chalé, toda vez que acabava de inventar alguma engenhoca. Eu me sentia privilegiado em ser o primeiro a ser compartilhado das ideias.

Quando ele chamava, eu já descia a escadaria de casa pulando de três em três degraus para ir mais rápido, pois alguma coisa de interessante ia me mostrar. Os chamados passaram a ser codificados com diversos tipos de assobio, cada um antecipando que tipo de evento estava por vir, ou apenas um simples chamado para ir para rua, e até sinal de algum perigo iminente. Com o tempo este código passou a ser adotado pela molecada inteira do bairro.
No porão do chalé dos Péret havia uma bela oficina, onde Rogério inventava um monte de traquitanas — de carrinhos para desembestarmos nas ladeiras, foguetes de brinquedo tentando imitar os então recentes inventados pela NASA, com estágios que se separavam na subida, aparato equipado com um mini paraquedas acoplado na cápsula espacial. Uma maravilha de brinquedo, impulsionado à pólvora, longe do meu alcance de fazer algo similar. Mas algum tempo depois arrisquei fazer alguns que viraram armas terríveis, totalmente descontroladas, levando muito perigo às pessoas, em particular para o Senhor Schweber, o alemão que achávamos muito misterioso, sempre apoiado na sua bengala, com chapéu e terno impecáveis, e meu amigo Aloísio, morador defronte à igreja. Ambos foram testemunhas oculares e quase vítimas destes aparatos malucos, impulsionados à pólvora, em quantidades mal calculadas, socadas com cola goma arábica. Felizmente foram apenas sustos, com leves prejuízos de paredes estragadas, salas chamuscadas e cortinas queimadas.

O Rogério, não se misturava com a molecada. Era sério, compenetrado e já ajudava o pai na loja da Rua São José. Atualmente é um advogado dos ótimos! Mas na época, era também exibicionista com aquela bicicleta marrom aro 24, equipada com freio contra pedal, na qual ele sentava virado para trás e saía na carreira, desde a loja na Rua São José até a sua casa no Rosário. Quando não era de costas, vinha com sacolas na mão sem segurar no guidão. Era um craque, um malabarista, considerando que andar de bicicletas normalmente nas ruas de Ouro Preto não é uma tarefa fácil.
Com ele aprendi a jogar xadrez, construir aeromodelos, fazer zarabatanas, pipas gigantes, sendo que uma delas quase me matou. Andar de bicicleta, e até a primeira bola de capotão ele me deu. Bola velha, saindo os gomos em pelancas, mas foi um bem-vindo presente justamente em ano de Copa do Mundo no Chile. Dele também veio para mim um carrinho maravilhoso, muito bem construído, conseguido na base de troca da minha buzina à pilha, para prender no guidão de bicicleta. Com este carrinho eu e meus amigos arriscamos as nossas frágeis carcaças pelas ladeiras abaixo, inclusive na Rua da Escadinha onde conseguíamos uma velocidade incrível, com uma boa freada no final, arrastando as rodas até feder à borracha queimada. Mas o carrinho era tão bem idealizado e construído, com eixo traseiro, feixe de molas, direção reforçada, freio com lonas, rolamento embutido nas rodas bem revestidas com bandas de pneus, que nos dava segurança absoluta do que fazíamos, ou quase. Na época fiquei pensando porque o Rogério trocara comigo um tesouro de carrinho por uma mera buzina a pilha azul, que tinha um som rouco horroroso. Mais tarde fui perceber que aquele carrinho não era mais compatível com a idade do Péret. Mas ele poderia tê-lo vendido facilmente para outro, não para mim, pois dinheiro no meu bolso era uma raridade. Acredito até que se eu não tivesse lhe dado a buzina, o carrinho eu o ganharia de qualquer forma – uma herança de amigos.

O meu lado artístico também foi em grande parte influenciado pela família Péret, quando minha mãe tomou aulas de pintura com Dona Lígia, a matriarca daquela geração, uma figura carismática, que nós meninos apesar de não nos darmos bem com a maioria dos adultos do bairro, com ela tínhamos um imenso carinho. Passei então a fazer alguns desenhos a nanquim, os quais eu conseguia vendê-los aos turistas estrangeiros. Uma folha de papel, uns rabiscos lá de frente à igreja, ao vivo, o turista se admirava com a minha rapidez e comprava na base da emoção.

 How much? — quando não era inglês, era francês ou alemão. Eu, não entendendo, ele gesticulava a linguagem universal dos sinais, esfregando o polegar no indicador.  

Eu apenas levantava a mão cheia que significava cinco cruzeiros. Era muito bom, pois com aquele dinheiro poderia comprar todas as guloseimas na padaria do Seu Dico, bombinhas e até algumas gramas de pólvora no armazém do Senhor José Ribeiro para fazer uns foguetes.


Escritor e pensador Jean Paul Sartre no Largo do Rosário e os mestres da pintura Takaoka e Guinard.
Morar no Rosário era conviver com a história. Presenciávamos muitos famosos pelos arredores, entre os quais os mestres Guinard, Takaoka, inclusive o escritor e pensador mundialmente conhecido Jean Paul Sartre que diziam ter passado por lá — e passou. A gente caminhava e interagia com estas pessoas, na época sem nenhuma importância para nós, mas que agora a ficha da memória cai e percebemos o quanto éramos privilegiados.
  O Rosário era muito mais movimentado do que atualmente, tendo no adro atrás da igreja o campinho de terra batida, onde jogávamos bola quase todas as tardes. Era muito inconveniente, pois a bola estava quase sempre saindo por uma das laterais, despencando ladeira abaixo ou atrás dos muros nos quintais alheios. Havia um vizinho mal-humorado que parecia ficar esperando a bola ser chutada no quintal, pois, mal ela caía e ele a jogava de volta, furada e rasgada por algum objeto cortante. Comprar uma bola não era coisa fácil, ainda mais para nós que estávamos sempre lisos.

— Ah, seu desgraçado! — e mais um monte de adjetivos. Xingávamos todos os nomes possíveis.

Ele parecia esperar, se esbaldando com a nossa ira, pois, escutávamos as gargalhadas maldosas do maldito. Mas ele teve o que mereceu tempos mais tarde, em um episódio que será contado mais adiante.

Uma das marcações do gol ficava rente à parede de trás da Igreja do Rosário, que tinha os vidros das janelas constantemente quebrados. Padre Simões, que sempre estava na igreja, era figura ímpar e muito simpática. Ao invés de proibir as peladas, mandou colocar telas de proteção nos vidros. Algumas beatas reclamavam que a parede da igreja ficava completamente suja com as marcas das boladas, principalmente em dias de chuva. Uma vez ou outra ele ia ver a pelada, arriscando alguns chutes, levantando a batina para fazer isso. Era muito engraçado vê-lo todo desengonçado dando uma bicuda na bola. Parecia um urubu desajeitado, mas era nosso amigo. Tão amigo que até o Zé Pereira do Rosário, com seus tambores, taróis, adereços e fantasias, a diversão tão esperada nos carnavais, era todo guardado na parte de baixo da residência dele. Tinha o lado católico e certa tolerância com o profano, mesmo com a rigidez da igreja Católica. Padre Simões era de uma inteligência e cultura muito além dos padrões normais daquela época.

 Deixem os meninos, senhoras! Deus não se importa com esta sujeira do lado de fora. 

Ele tentava de todas as formas convencer Dona Luluta e Dona Anita, que eram maiores reclamantes entre tantas outras.

 Meninos! Moderem-se! Acho até bom vocês se empenharem a ajudar nas missas para melhorar a situação de vocês com os adultos do bairro. — ele nos convencia e esporadicamente éramos coroinhas nas missas de domingo, mas o sino... ah! O sino do Rosário! Este nos disputávamos em corridas pelas escadas acima em espiral até o alto, para ver quem tocaria o sino maior.

No adro da frente, antes com muita grama, jogávamos pente altas, brincávamos de pique esconde e o temido tico-tico fuzilado, este último jogo, responsável pelos hematomas nas costas dos meninos, muitos galos nas cabeças e alguns com cortes profundos. Era uma rotina perigosa e gostosa. Ninguém ficava dentro de casa preso entre quatro paredes como as crianças de hoje. O único dispositivo mais avançado pertencia ao Marco Antônio Maia, nosso amigo já falecido, dono de um rádio de pilha Evadim, com aquela longa antena, som que ia e vinha misturado com muito chiado. Mas era nele que escutávamos os campeonatos do Rio de Janeiro. Virei torcedor Vascaíno por influência dele e do Senhor Almir, um vizinho agradável que morava na parte de baixo do sobrado. As televisões preto e branco, sabíamos que tinha apenas na casa do Senhor Almir, na casa do Vinício Godoy e na casa do Marco Antônio. Máquina fotográfica, nem pensar, apenas o Márcio Guimarães, o Vitor, irmão do Vinício e outros poucos possuíam, por isso temos poucos registros da época. Bicicletas eram apenas duas; uma Caloi com quadro feminino, da família Godoy, e a minha linda MerckSwiss azul que meu padrinho me dera de presente. Deu porque comprara duas para os filhos dele e levou uma de quebra. Nem dormi na noite olhando para ela ao lado da minha cama. Lembro-me que tempos depois a troquei com um relógio que não funcionava - meu primeiro mau negócio antes de muitos outros. Nem preciso de consultar terapeuta para saber porque me dei mal em muitos negócios – está aí a explicação e a origem.

Ao lado de casa morava a família Santos Maia. Embaixo existia uma tipografia que funcionava o dia todo, com muito serviço. Senhor Ademar era o proprietário, tendo no estabelecimento um ajudante e um simpático impressor. Eu era bastante curioso e aquela arte de compor os tipos, cortar os papéis na guilhotina, imprimir e encadernar me fascinara. Foi um vírus da imprensa que entrou no meu inconsciente, despertado tempos depois me levando para os caminhos da publicidade, das artes e do jornalismo, área que atuei em grande parte da minha vida.

Geralmente estudávamos o primário no Grupo Escolar Dom Pedro II, o curso de admissão ao ginásio na Escola Marília de Dirceu e o ginásio no Colégio Arquidiocesano sob a chibata do Padre Carmélio, verdadeiro Coronel do comandante Padre Rocha. Nossas notas eram relativas ao nosso tempo de estudo em casa. As minhas principalmente, que sempre estavam numa mistura de muito vermelho e pouco azul. Na Escola Marília de Dirceu a coisa andava mais solta, com brechas que permitiam que matássemos muitas aulas, ou no Morro da Forca, ou no Pocinho, que naquela época era uma área rural, pois as casas terminavam na Barra, bem no início da subida para Bauxita. Depois que a escola contratou Seu Lampião para caçar os gazeteiros, passamos a matar as aulas no adro frontal da Igreja das Mercês de Baixo, pois lá de cima observávamos os movimentos do Seu Lampião saindo da escola afim de nos pegar — jamais conseguiu. E lá fumávamos três a quatro maços de cigarro Mistura Fina, um atrás do outro. Íamos para casa fedorentos de tanto tabaco, e a sova comia solta no lombo.

Nossas mães mal sabiam onde andávamos, coitadas. Imaginavam apenas que estivéssemos pelas redondezas da Igreja do Rosário. Na verdade, andávamos por todas as partes; morro do Areião, Cachoeira das Andorinhas, Pocinho, e até ir para Saramenha passando por cima de um cano, fazendo dele uma extensa pinguela, sobre uma lagoa de rejeitos industriais que fumegava de quente. Eram crianças que variavam na faixa etária entre sete e treze anos, que se ausentavam de suas casas por meio período para brincar, meio para frequentar a escola e depois do jantar as brincadeiras ainda avançavam noite adentro. 

Antigo Hotel Monteiro, onde ocupávamos algumas salas do segundo andar com nosso Clube.
Nosso lugar predileto era um clube que formamos numa das salas do segundo piso do velho casarão do Rosário, abandonado desde que o Hotel Monteiro fechara as portas. Lá moraram a família Fortes ocupando alguns cômodos do lado norte e, do outro lado, a família do Senhor Abeylard, um correspondente da Segunda Guerra Mundial, pai do Marco Aurélio, que tinha muitas histórias as quais escutávamos sem piscar. Enxergávamos o ex-combatente como verdadeiro herói e adorávamos quando nos carregava no seu jipe 51 pelas cercanias de Ouro Preto, até para caçar. Este clube era nosso QG e lá tudo guardávamos, ou mantínhamos em segredo aquilo que fazíamos de proibido, culminando certa vez em um episódio bem constrangedor, envolvendo o grande armazém do Senhor José Ribeiro, que merece um bom capítulo neste blog.

Tínhamos nossos amores, escondidos é claro, pelas meninas que amávamos platonicamente. Certamente também postarei aqui nossas musas da escola, e aquelas mais velhas que despertavam nossa libido. As amigas das nossas irmãs, achávamos lindas, sonhávamos com elas, mas nada mais do que sonhos. A minha musa na Escola Marília de Dirceu chamava-se Joana D'Arc, mas ela nunca soube disso. Era tão linda e educada, que não apenas eu, mas muitos colegas da sala tinham o mesmo sentimento, por isso havia uma disputa imensa de chegar mais cedo na escola para ocuparmos uma carteira o mais próximo dela possível. De vez em quando, por sorte, ganhávamos um sorriso, e apenas isso alimentava a esperança que um dia ele pudesse se apaixonar, mas sem chances! Nem beijo na boca havíamos experimentado ainda. Nem mesmo sabíamos como fazê-lo. Hoje, se ela estiver lendo isso, ou seus descendentes, certamente já é uma senhora, avó, cheia de netos, que ela releve esta menção com meu sincero respeito para uma época sem malícias. É apenas uma doce e inocente lembrança que fui buscar nas profundezas do meu consciente, despertado pelo clima de Ouro Preto. Para resolver este problema da falta de beijo a única solução foi arriscarmos uma ida na "Coréia", nome dado à Zona do Meretrício, em Ouro Preto, bem perto do centro, onde pedimos algumas das donzelas para nos ensinar alguma coisa sobre beijar. 

 Que isso, pirralho! — caíam na risada. — Saiam fora daqui seus pestes. Querem nos arranjar problemas com seus pais?

E assim crescemos todos, cercados de muitos artistas que pintavam ao ar livre na cidade, pessoas marcantes, a influência direta da igreja e dos padres. Meu pai que trabalhava fora e voltava em casa de quinze em quinze dias, e até com mais espaço de tempo, para mim era muito confortável ficar nas ruas de manhã à noite, pois a coitada da minha mãe não dava conta de todos nós. Foi uma infância onde não tínhamos nada que o progresso e as tecnologias de hoje oferecem, que aprisionam o ser humano em uma sala.  Tínhamos a liberdade em um ambiente saudável e cheio de lugares ao ar livre por onde aventurávamos. Éramos do Bairro do Rosário, mas permeávamos por Ouro Preto toda, cada beco, cada túnel, cada brocotó de serra, até no Morro do Gabriel para onde íamos de Maria Fumaça. Foram bons tempos bem vividos, com boas lembranças e outras nem tanto. Tenho saudades? Não, já passou. Ficou apenas a história.

Este blog é uma espécie de exercício para testar e reavivar a minha mente, e a dos meus amigos, enquanto vou fazendo a terceira redação dos meus livros os quais escrevo.

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E como dizia o nosso ex-presidente da república, também mineiro, Juscelino Kubitscheck: eu não me importo de voltar atrás e mudar de ideia, pois como ele, também não tenho compromissos com meus erros – minha memória pode ser enganada pelo tempo. Meus amigos, se souberem de alguma falha, um erro, me escrevam e eu refarei o texto consertando e fazendo jus aos fatos, para que daqui saia um bom registro que documente aquela época.

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Fotos antigas, importantes documentos históricos, nesta postagem, algumas são de autoria de Luis Fontana (Ouro Preto), Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado (Sartre). Guinard (Projeto Guinard)


Saudações!